EDITORIAL (SAVANA)
Muecate saiu do seu pacato e relativo anonimato para se tornar tema nacional.
Não porque haja petróleo ou gás natural nessas bandas. Não porque foi lá aberta uma nova exploração a céu aberto de carvão mineral.
Muecate é notícia pelos piores motivos.
Um mecânico irreverente deu a sua opinião sobre o administrador local. O pequeno ditador de Estado não gostou, levou-o ao julgamento em processo absolutista e o cidadão está agora condenado a converter em multa uma pena de prisão por abuso de liberdade de expressão, ofensas à honra e bom nome da autoridade.
Não foi a justiça que se revoltou perante a injustiça. Nenhum juiz, nenhum procurador. Mais uma vez foram os jornalistas a trazer à ribalta nacional os males de que é feito o país profundo.
Apesar de Muecate ser um distrito de Moçambique, estar abrangido pela mesma Constituição que abrange todos os moçambicanos, estar perto de Nampula, não ser distante da estrada principal que vai a Nacala, ser fácil falar no telemóvel e chegar lá o noticiário de rádio e televisão.
Aiuba Assane, o mecânico de Muecate, não tem um novo passaporte biométrico nacional, mas é seguradamente um cidadão moçambicano. Mas a sua desdita fá-lo parecer um desterrado na Guiné-Bissau, onde um qualquer palhaço de farda e AKM na mão há anos que faz ali a lei do dia.
A sua desdita parece não ter feito eco ainda nos longínquos gabinetes da Procuradoria Geral da República em Maputo, na sede do ministério da Administração Estatal e na Liga dos Direitos Humanos.
E este é o drama real de todos os Aiuba Assane espalhados pelo país fora, num raio não muito superior aos 30 quilómetros do epicentro da capital.
Apesar da bandeira que cobre todos os moçambicanos ser a mesma, apesar dos direitos e garantias da Constituição consagrarem a liberdade de expressão desde 1990. Muecate não é um enclave, não é um protectorado nem uma zona franca do livre arbítrio. Como não o são Changara, Tsangano, Catandica, Morrumbala, Montepuez e Maringué, onde tantos outros casos lamentáveis têm acontecido desde que foi formalmente abolido o regime de partido único.
O que Muecate prova é que, apesar da democracia e disseminação de informação trazida e introduzida pelo telemóvel e outros media, há um outro país real fora de Maputo que resiste estoicamente à transformação e mudança.
Muecate e o simulacro de justiça protagonizado pelo administrador Fábrica é o complemento das constantes manipulações e ordens ditatoriais dos administradores às chamadas rádios comunitárias sob sua alçada, das guias de marcha exigidas à porta dos palácios distritais de suas excelências, das fraudes eleitorais e o enchimento de urnas, do incitamento à violência e discriminação contra militantes de oposição, da pressão e chantagem permanente sobre os agentes económicos para contribuírem com fundos para o Partido-Estado, das pressões contra prelados, pastores e maulanas com olhares críticos sobre as realidades que afligem as suas comunidades.
São estes os Muecates do nosso descontentamento, os espelhos das assimetrias nacionais que não conseguem ser ofuscadas pelas visitas efémeras de presidências abertas e os sete milhões distribuídos à volta da mesa do rei.
A unidade nacional faz-se de sacrifícios e privilégios. O orgulho cimenta-se na justiça e equidade.
Quanto mais afastarmos os Muecates do nosso quotidiano mais garantimos o sentimento de cidadania e moçambicanidade. Que a lei é igual para todos.
Que o sol quando nasce brilha para todos.
Que Maputo e Muecate não têm distância.
Fonte: SAVANA - 16.04.2010